De manhã, no Passeio Público, gosto de acompanhar o trabalho dos tratadores de animais. Sigo seus carrinhos de mão como quem segue um guia turístico, uma entidade muda, provedora. Ali tem de tudo: verduras e legumes, frutas cortadas, ratinhos brancos, iscas de carne desconhecida. Gosto particularmente do momento em que o tratador invade o grande viveiro arborizado, junto ao restaurante. Ele enche de grãos uma série de tigelas postas no solo e, ao comando da fome, dezenas de passarinhos — azulões, cardeais e pintassilgos —, antes invisíveis, brotam das árvores.
Perco nisso uns dez minutos e logo sou abordado por alguém. É infalível. Pode ser a vendedora de paçocas ou um sujeito querendo me empurrar uma corrente de ouro; em geral, é só uma das moças que batem ponto no lugar. No sábado de carnaval, por exemplo, se aproximou de mim uma senhora, exausta e um pouco acima do peso, vestindo uma roupa leve demais para o frio deste verão. Era, no entanto, uma profissional objetiva, não se queixava nem aparentava desconforto. Mal me viu, já me lançou aquela famosa pergunta-convite, a praticidade em duas sílabas: vamos?
Declinei, com o agradecimento de sempre. Ela se escorou no cercado da gaiola, forçou a vista, míope ou cansada, demonstrando simpatia pelo mesmo azulão que eu observava, e quis saber, num forte sotaque catarinense:
— Gostas de passarinho?
A questão era simples, mas escondia um componente de pateticismo duro de relevar. Encabulado, respondi que gostava, sim, ao que ela, muito séria, replicou:
— Só de passarinho? E de mulher, não gostas?
Aí rimos e eu não disse mais nada, apenas esperei que se afastasse, vitoriosa. Alguns metros adiante, abordou outro homem, um desses caras que dormem no gramado do Passeio, sob o arvoredo úmido e o ninhal das garças. Não ouvi a negociação entre eles, mas notei que, apesar de amistosa, não terminou num acordo.
O homem, na verdade, nem tinha tempo para isso. Estava em meio a uma missão de cobrança. Percorria o parque, indo de grupo em grupo, entre seus parceiros de pernoite, de cada um recolhendo uma ou duas moedas. Tratava-se de uma coleta serena, combinada com antecedência, pois todos o saudavam sem rancor, já parecendo, inclusive, haverem separado, para ele, o dinheiro necessário.
De bolsos cheios, o cara se dirigiu à feira de orgânicos, àquela hora já bem concorrida, e na barraca das bolachas artesanais comprou um pacotão de biscoitos. Depois revisitou os colegas que o tinham abastecido previamente, dando a cada sócio o seu punhado de bolachinhas. Feita a divisão, reservou o fundo do pacote para si mesmo, contou as bolachas que lhe cabiam, talvez meia dúzia, e partiu, lanchando, rumo à Ilha da Ilusão, onde mantinha seus panos de dormir.
No caminho, porém, avistou, no banco atrás do aquário, a mesma senhora que nos abordara no viveiro. Equilibrava nos joelhos nus uma caixinha plástica de morangos, que já ia pela metade. A ponta de seus dedos estava vermelha, da mesma cor de seu batom, as frutas maduras demais. Compulsiva, ela enchia a boca de morangos, e quase nem os mastigava. Tinha sucumbido a um luxo perigoso, uma caixinha daquelas era cara, ou será que a havia ganhado de alguém?
O homem segurou o passo. Encarou-a, suspendendo a mastigação das bolachas. Ela notou o interesse dele e se pôs de prontidão, a mandíbula de repente imóvel, os lábios apertados, embora a língua, lá dentro, ainda esmagasse os morangos. Fechou a arca do tesouro nos joelhos, como se abaixasse a tampa de uma caixinha de música. Ele avaliou suas pernas, o laço de fita em seu cabelo e os morangos que restavam em seu colo. Ela avaliou os sapatos dele, seminovos, sua barriga e seu boné, e a quantia de bolachas no pacote que carregava.
Então sorriram, despedindo-se de longe, fica pra próxima, fique com Deus, Deus te acompanhe! E assim, satisfeitos, liberaram-se mútua e temporariamente da angústia e da obrigação dos negócios interpessoais.
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Que demais ler isso, to querendo ir já cedo pro passeio público, faz tempo que não sou assediado
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