Abro meu bloco de notas para escrever a newsletter de julho da Tutano. Sim, camaradas, eu tenho esse hábito estranho de escrever textos longos no celular. Há um lado bom nisso: eu tenho que economizar nas palavras. Digito apenas com o polegar direito, diferente de quando uso o laptop e me torno uma metralhadora de letras usando, com maestria, os 10 dedos. Sorte do leitor.

Preciso escrever algo que se relacione com o universo da gastronomia, de restaurantes, da comida em si.

Duas imagens rodaram o mundo na semana passada. Uma era um morango revestido de brigadeiro branco e mergulhado numa solução de açúcar com corante que o transforma numa espécie de cristal de Murano. Lembro de ter experimentado essa iguaria bizarra quando eu era criança e, não sei se dei azar, não me caiu bem e não sinto vontade de repetir.

Influencers, atrizes, cantores, chefs de cozinha e até políticos aproveitaram a trend para gerar conteúdo nas redes sociais. No estacionamento onde eu paro meu carro havia um vendedor com diversas caixinhas de morango sobre uma mesa improvisada. Veio me dizendo: “olha só, os produtores não tão dando conta do recado, essa é a última leva, aproveita, patrão!”

Dizem que a repercussão foi tanta que parecia uma Páscoa fora de época. Páscoa, pra quem trabalha com confeitaria, é como um Natal, ou seja, o morango foi o Papai Noel em pleno inverno para milhares de pequenos empreendedores do Brasil. Bem que algum publicitário poderia lançar a campanha “Julho Morango” para que essa febre entrasse oficialmente em nosso calendário. Já pensou? Julho morango, agosto melão, setembro aspargo e assim por diante. Seria uma forma de entendermos melhor o que são produtos da estação e por que devemos consumi-los na época adequada. A ideia de respeitar a sazonalidade é plenamente difundida na Itália, Espanha, França etc., enquanto aqui ainda tem gente congelando pinhão em junho pra comer em dezembro.

Eu jurei pra mim mesmo que não falaria sobre morango, mas rendeu.

Outra imagem que rodou o mundo foi a de uma criança em pele e osso usando uma fralda feita de saco de lixo, agarrada no colo da mãe. Sim, estamos falando de Gaza e das mais de 150 pessoas que já morreram de fome. Outros morreram na fila tentando pegar comida. Falar sobre comida é importante; falar sobre a falta dela é urgente.

Indignado, o ator Roberto Benigni, de A Vida é Bela, uma das vozes corajosas que se levantou contra a tragédia, fez um vídeo dizendo que, quando crianças brincam de guerra e alguém se machuca, a brincadeira para. Então, que covardia é essa que uma guerra não para quando crianças são mutiladas e morrem de fome?

Diversas entidades do mundo vinham alertando sobre o caos nutricional imposto por Israel na região, mas a falta de firmeza — e até conivência — de líderes, que preferem falar de morango pra não se arriscar, permitiu que a fome chegasse a níveis irreversíveis.

Só depois que o menino de corpinho esquálido, com o globo ocular saltando da face e cotovelos parecendo bolas de tênis que sustentam dois gravetos, rodou o mundo é que o Estado de Israel resolveu lançar pacotes de comida de paraquedas e reabrir o corredor humanitário para entrada de suprimentos por terra. Surtiu efeito. Sim, acabar com a fome depende de vontade política.

A violência me atinge em cheio. Passei a semana embrulhado, impotente, sentindo culpa (que não é minha) por não conseguir fazer nada. Enquanto eu dava um delicioso palitinho coberto de parmesão gratinado para meu neto mordiscar, a televisão mostrava os esfomeados esmagados uns contra os outros, batendo panelas na fila da sopa.

É por isso que, desde a primeira edição da Revista Tutano, nós entendemos que política e alimentação estão intrinsecamente conectados. Como falar de cuscuz paulista, moqueca, açaí ou espeto corrido sem falar sobre alimentação escolar, obesidade, enlatados e ultraprocessados e, acima de tudo, sem falar de fome? É nosso compromisso ético e moral.

Entre os dias 27 e 29 de setembro teremos a sexta edição do Festival Tutano. Três dias para celebrar a gastronomia, encher o bucho e experimentar novos sabores. Mas venha preparado, porque também iremos embrulhar o teu estômago com debates essenciais que vão muito além do previsível morango do amor.

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